A polêmica da aspirina – afinal, quem deve usar?
Vamos pensar em dois cenários: João, 69 anos, tinha alguns problemas de saúde, como hipertensão arterial e diabetes, mas não gostava de se cuidar.
Já sua esposa, Maria, de 65 anos, tinha uma excelente saúde, fazia atividade física diária, dieta balanceada e tomava vitaminas para ser saudável.
João, certo dia, tem dor no peito, é levado ao hospital onde é diagnosticado um infarto. Recebe tratamento e sai com a orientação de tomar aspirina continuamente, afinal ela é uma droga poderosa para prevenção de novos eventos cardíacos. Maria, interessada em conservar sua boa saúde, começa a tomar aspirina também, a dose é infantil e não vai fazer mal…
O tratamento de doenças cardiovasculares (DCV), principalmente do infarto do miocárdio (IM) e mesmo dos acidentes vasculares cerebrais isquêmicos (AVCi), vem se beneficiando de muitos conhecimentos acumulados, com importantes repercussões na redução da sua mortalidade.
Uma das maiores contribuições para este fato foi a indubitável ação da aspirina, medicação conhecida há tantas décadas como responsável pela melhora nas taxas de sobrevida de pacientes que sofriam de síndromes coronárias agudas (que incluem o IM e a angina).
Desde os anos 1980, diversos estudos vêm corroborando sua importância no tratamento destas doenças tão graves. Através de sua ação na redução da capacidade de formação de coágulos sobre as placas de ateroma (gordura), que naturalmente tendem a se formar nas artérias do coração e do cérebro, a aspirina (ou ácido acetilsalicílico – AAS) reduz a possibilidade de entupimento dos vasos, que suprem estes órgãos de nutrientes e oxigênio. Assim, uma intervenção medicamentosa aparentemente tão simples pode reduzir em até 30% a mortalidade destas emergências clínicas.
O uso da aspirina se tornou, desde então, um dos pilares no tratamento das pessoas que sofriam com os males das DCV. Talvez por ser aparentemente tão inócua, ainda mais na dose usualmente recomendada para a proteção nessas situações, (apenas 81 a 100mg são suficientes), o uso indiscriminado deste medicamento passou a ser uma realidade. Afinal, doses que usamos para crianças não poderiam trazer quaisquer males para usuários adultos, certo?
Errado! Desde 2019, a American Heart Association (AHA), entidade que desenvolve guias para tratamento das doenças cardiovasculares e cerebrovasculares nos Estados Unidos da América, alerta para possíveis complicações do uso inadequado da aspirina. Com a tendência do seu emprego cada vez mais frequente e sem uma indicação precisa, foi percebida que a ocorrência de fenômenos hemorrágicos, principalmente gastrointestinais, superava as possíveis vantagens naquelas pessoas que não tinham justificativa clínica.
Acontece que, apesar de ser utilizada em doses baixas, a aspirina é um potente irritante da mucosa gástrica, principalmente quando exposta continuamente a este agressor. Gastrites, úlceras e hemorragias são mais frequentes em usuários crônicos deste medicamento.
Outra preocupação, comumente deixada em segundo plano, é a possibilidade de alergias ao ácido acetilsalicílico (AAS) e outros efeitos, como descompensação de asma brônquica. Pacientes com distúrbios de coagulação também são considerados de risco para aumento de sangramento com o uso da aspirina. Procedimentos diagnósticos ou terapêuticos podem ser comprometidos pelo uso contínuo do AAS.
Afinal, para quem o uso contínuo da aspirina tem um efeito benéfico, que certamente supere seus riscos?
Infelizmente não é para todos. Listaremos algumas situações em que ela deve ser considerada de forma inquestionável, desde que não haja contraindicação:
– pessoas que já tenham apresentado IM ou AVC isquêmico;
– pacientes que tenham implantes intravasculares, como stents coronários ou em vasos carotídeos, assim como algumas próteses cardíacas.
Ou seja, como prevenção secundária, situações nas quais a pessoa já mostrou uma suscetibilidade aumentada para DCV sempre devemos considerar seu uso, descartadas as situações de risco aumentado.
O uso indiscriminado ocorre principalmente na profilaxia primária, ou seja, naqueles indivíduos que ainda não tiveram IM ou AVC, mas querem prevenir sua ocorrência. Para estas situações devemos ser muito mais cuidadosos.
Segundo a AHA, em seu consenso de 2019, devemos observar alguns critérios para a indicação do uso contínuo de aspirina:
– Homens entre 45 e 79 anos de idade quando o risco potencial de DCV importante supera o risco de sangramento ou outras complicações;
– Mulheres entre 55 e 79 anos de idade quando o risco potencial de DCV importante supera o risco de sangramento ou outras complicações;
– pessoas diabéticas acima de 40 anos de idade com outros fatores de risco para DCV.
O que está ocorrendo neste momento é a reavaliação destas indicações por uma Força Tarefa de cientistas e médicos, que destacam maior preocupação com potenciais complicações do tratamento. É importante ressaltar que seu posicionamento é de combater, baseados nas evidências científicas acumuladas, apenas o uso indiscriminado deste potente agente anticoagulante e não condenar o medicamento para todos.
Voltando aos cenários do início, Maria teve um quadro de intensa dor gástrica após dois meses do infarto de João. Precisou fazer endoscopia digestiva alta que mostrou uma úlcera no duodeno, necessitou de tratamento de alguns meses e hoje tem intolerância a diversos alimentos e medicamentos
A decisão sobre o uso ou não de aspirina como medicamento de prevenção não é brincadeira. Não deve ser discutida na roda de amigos ou com pessoas que não são habilitadas para entender os riscos e benefícios de seu uso. Ela deve ser individualizada, conversada com seu médico, que apontará não só as vantagens como também os sinais de alerta aos quais devemos estar atentos para uma intervenção caso algo saia do esperado. Além disso, sempre deve ser ressaltado que a adoção de hábitos saudáveis como dieta adequada, atividade física regular e boa qualidade de sono são tão ou mais eficazes na prevenção de DCV que qualquer medicamento. Pense nisso!
Sobre o autor:
Cardiologista e Emergencista do Corpo Clínico do Hospital Sírio-Libanês.
Pós - graduado em Geriatria pelo IEP – Hospital Sírio-Libanês. Gestor do Pronto Atendimento no Hospital Santa Cruz (2004 a 2009). Membro do comitê de ética do Hospital Sírio-Libanês (desde 2014).
Responsável técnico pela Clínica Barduco há 25 anos. Membro do Conselho Editorial da TREVOO (desde 2021).