Os benefícios da música quando utilizada precocemente como instrumento para acalmar os recém-nascidos irritadiços e chorosos, além do benefício cognitivo para aprendizado nas fases iniciais da vida é conhecida de forma geral em nossa sociedade e em diferentes de culturas através do mundo. Durante a infância, para aprender o abecedário e a contar, utilizamos o recurso de canções infantis para facilitar o aprendizado. Essa técnica também pode ser útil para o ensino lúdico de novos idiomas.
A Ilíada e Odisseia, duas poesias épicas gregas de Homero, empregavam rima e métrica de forma organizada para que pudessem ser transpostas através da musicalidade em linguagem falada de forma íntegra, facilitando o entendimento e gravação dos versos. Quem nunca se emocionou ao ouvir determinada partitura musical? Ou utiliza composições animadas em sua playlist para prática de atividade física?
O poder da música para elevar o bem-estar físico e mental das pessoas é conhecido há milênios. Entretanto, os efeitos da musicoterapia passaram a ser estudados e mais bem compreendidos a partir de 1940. Após a Segunda Guerra Mundial utilizava-se este instrumento para tratar os doentes já nas grandes enfermarias. Tanto os indivíduos com transtorno de ansiedade pós-traumático, quanto os que apresentavam efetivamente ferimentos na cabeça, por trauma direto ou indireto relacionados à batalha.
Antes do advento da Levodopa na década de 60, os pacientes internados em enfermaria com quadro de parkinsonismo, como relatado no livro e filme “Tempo de Despertar” (Awakenings), se beneficiavam de terapias não farmacológicas, sendo a musicoterapia especialmente presente nesse contexto. Alguns enfermos completamente rígidos e sem movimento tinham momentos de melhora transitória com a exposição musical ou a determinado instrumento, como o piano.
O “Efeito Mozart” foi estudado nas últimas décadas no que tange ao impacto na epilepsia. A despeito de não existirem estudos robustos e controlados de metodologia impecável, alguns achados descritos sugerem benefício em relação ao controle de crises epilépticas, assim como atenuação de alterações no traçado do eletroencefalograma em população exposta à música diariamente durante 8 minutos e no período de seis meses. Neste caso, a composição escolhida foi a sonata para piano em ré maior K.448 de Mozart.
Obviamente, o efeito deve se estender a outras composições de características similares, entretanto esse tema fascinante deverá ter seu conhecimento discutido e ampliado nos próximos anos. Determinados pacientes com distúrbio da linguagem (afásicos) pós-AVC podem ser incapazes de iniciar uma conversa de forma espontânea, mas serem aptos em cantar composições previamente conhecidas de forma integral.
Pacientes neurológicos com distúrbio do movimento, por exemplo, discinesia motora e tiques, como aqueles com Síndrome de Giles de la Tourette, apresentam movimento involuntário hipercinético,ou seja, que geram “movimentos em excesso”, podem apresentar intenso benefício ao escutar ou tocar instrumento.
A causa desse fenômeno ainda é desconhecida, mas, uma parte desses movimentos involuntários pode ser “canalizada” para a atividade motora ou sincronizada com o ritmo da música de forma inconsciente. Em enfermos com transtornos hipocinéticos, ou seja, onde os movimentos são reduzidos, como a Doença de Parkinson, essa técnica ainda é utilizada para amenizar seus sintomas de forma complementar.
Para pacientes com demência, ou seja, indivíduos com declínio de suas funções intelectuais e que evoluem com perda de sua independência (o principal exemplo é a Doença de Alzheimer), o efeito da música pode ocorrer mesmo em fases mais avançadas.
A repercussão nessa população envolve resposta emocional, lembrança de memórias antigas e estímulo de determinadas faculdades cognitivas. O efeito pode ser duradouro e significar melhora do humor e comportamento. Pode gerar interação social e sensação de pertencimento, em indivíduos que muitas vezes se tornam complementarmente isolados.
“Não é preciso possuir conhecimentos formais de música- na verdade, nem sequer é preciso ser particularmente ‘musical’- para apreciá-la e responder a ela nos níveis mais profundos.Ela é parte do homem, e não existe cultura humana na qual não seja altamente desenvolvida e valorizada. Sua própria ubiquidade pode banalizá-la no cotidiano: ligamos e desligamos o rádio, cantarolamos uma melodia, acompanhamos o ritmo com o pé, vasculhamos nossa mente procurando a letra de uma velha canção e não damos a menor importância a tudo isso. Mas para quem está perdida na demência, a situação é diferente. A música não é um luxo para essas pessoas, é uma necessidade, e pode ter um poder superior para devolvê-las a si mesmas, e aos outros, pelo menos por algum tempo.”
(Oliver Sacks – Alucinações Musicais: relatos sobre a música e o cérebro. 2ª Edição. Companhia das Letras. Página 365)
Finalmente, como dizia T. S. Eliot: “você é a música, enquanto a música dura”.
Sobre o autor:
Possui graduação em medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e residência médica em Neurologia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Especialização em Neurologia Cognitiva e do Comportamento pela mesma instituição.
Atualmente é médico-assistente da Divisão de Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da FMUSP. Membro do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento (GNCC) do HC-FMUSP.
Membro titular da Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e membro da Academia Americana de Neurologia (AAN) desde 2018.