Quais são os distúrbios auditivos e musicais que podem ocorrer?
Sabemos que o acometimento de regiões distintas do ouvido e cérebro podem gerar diferentes formas de alteração deficitárias da percepção auditiva e musical, eventualmente de forma completa, que denominamos de “amusia”.
Um paciente com lesão do hemisfério direito pode tornar-se parcial ou incompletamente incapaz de diferenciar tons, enquanto no hemisfério esquerdo os ritmos. Um exemplo histórico anedótico relaciona-se ao argentino Che Guevara: descrevia-se que ele dançava mambo, enquanto uma orquestra tocava tango. Existem relatos de músicos profissionais, como pianistas, que sofrem uma lesão no cérebro e terão incapacidade completa em detectar tons, compor e executar partituras.
A perda da percepção auditiva – chamada de hipoacusia, que pode ocorrer por doenças específicas do ouvido ou do próprio envelhecimento (ou das outras estruturas relacionadas ao sistema auditivo), é frustrante e incapacitante.
Muitas vezes o indivíduo tem dificuldade de comunicar-se, fica triste, sem estímulo e, caso não identificado precocemente, não é incomum o desenvolvimento de transtorno depressivo e declínio cognitivo. Há casos que os próprios amigos e familiares deixam de tentar se comunicar com os indivíduos portadores de distúrbios auditivos, e o idoso afetado fica muito isolado. Leia o artigo A Importância da Audição na Velhice!
O filme “O Som do Silêncio” indicado ao Oscar em 2021, discorre sobre a história de um baterista que fica surdo e, mesmo após a realização de implante coclear, continua a ser incapaz de apreciar música pela limitação do método, deflagrando dilemas psicológicos e sociais.
Entretanto, nem sempre essas pessoas perdem suas capacidades musicais. Exemplo histórico, o alemão Ludwig van Beethoven iniciou perda auditiva de origem obscura aos 26 anos, e ficou praticamente surdo aos 46 anos. Mesmo assim, tardiamente, compôs sua última melodia – A Nona (ou Sinfonia n°9 em ré menor), uma das maiores obras-primas da história da música.
Outras vezes, os achados musicais patológicos são “positivos”, ou seja, apresentam-se de forma involuntária, sem estímulo sonoro do meio exterior e de forma repetitiva. Por exemplo, indivíduos com surdez grave podem apresentar alucinações musicais, eventualmente de forma consciente e tais sons não estão presentes de forma real no ambiente. Um paciente idoso que avaliei recentemente, com grave perda auditiva bilateralmente, disse-me que “parecia que estava tocando uma orquestra musical em seu ouvido durante todo o dia”.
Pacientes que sofrem de epilepsia do lobo temporal podem ter sintomas premonitórios à crise epiléptica propriamente dita, denominada “aura musical”, em que ouvem determinado trecho de alguma melodia ou música. Eventualmente, o evento pode ser “ictal”, ou seja, ser elemento da própria crise epiléptica.
Outro exemplo de ocorrência mais comum de distúrbios auditivos, que a maioria das pessoas sofre ao longo da vida de forma “benigna”, é o brainworm ou earworm. Basicamente, é a repetição incessante e involuntária na mente de determinados trechos musicais, geralmente três a quatro compassos, como jingles de propagandas ou músicas, na maioria das vezes de exposição recente, baixa complexidade musical e particularmente desagradáveis.
Entretanto, determinadas doenças podem ter esses sintomas, por exemplo, pacientes com Doença de Parkinson, Síndrome de Tourette e uma forma pós-infecciosa de parkinsonismo descrita no início do século XX – A Doença de vonEconomo ou Encefalite Letárgica. Ela foi narrada no livro “Tempo de Despertar” de Oliver Sacks (1973), adaptada ao filme homônimo em 1990 e no formato de ópera por Tobias Picker recentemente.
De outro modo, existem os indivíduos com funções acentuadas de determinados aspectos auditivos e musicais. Essa característica nem sempre gera algum ganho funcional, como melhores habilidades de comunicação ou musicais, mas possuem aspectos interessantes.
Um dos exemplos mais habituais é o “ouvido absoluto”, capacidade de identificar tons e notas musicais e qualquer tipo de som como assoar o nariz ou barulho do garfo ao cair no chão. Muitas pessoas, mais frequentemente músicos, possuem essa característica de forma natural. Não obstante, sabemos que fatores ambientais, como exposição à música e aprendizado de instrumentos musicais e línguas tonais – como o mandarim – principalmente na tenra idade, podem ser fator importante no desenvolvimento desta habilidade.
Outro interessante e famoso exemplo, o estadunidense Kim Peek (ou “o homem-biblioteca”, falecido em 2009) – era portador da síndrome de Savant, basicamente caracterizada por aspectos sociais semelhantes ao autismo, dificuldades cognitivas como abstração e linguagem, além da perda de características motoras – principalmente de coordenação.
Entretanto, de forma ímpar, Peek apresentava capacidades intelectuais acima do normal em outras áreas, como cálculo, memória e música: ele era capaz de recitar qualquer trecho de aproximadamente 12 mil livros, além de ouvir uma partitura inteira uma única vez e se lembrar de forma completa de cada aspecto musical, mesmo que muitos anos após a exposição inicial. Dustin Hoffman, no filme Rain Man (1988), inspirou-se em Kim para encenar o personagem savant Raymond Babbit.
Em outro aspecto, temos os sinestetas, que são capazes de conectar diferentes tipos de sentidos, como por exemplo, ouvir um determinado som e visualizar uma cor ou sentir gosto. Esse tipo de achado pode ser algo individual e existente desde o nascimento em algumas pessoas, e também presentes como aura de pacientes que sofrem de enxaqueca, efeito de intoxicação medicamentosa ou secundário ao uso de substâncias exógenas, como o LSD.
“Ó homens que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantropo, como vos enganais. Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo […] de seis anos a esta parte, vivo sujeito a triste enfermidade, agravada pela ignorância dos médicos. Iludido constantemente, na esperança de uma melhora, fui forçado a enfrentar a realidade da rebeldia desse mal, cuja cura, se não for de todo impossível, durará talvez anos”
(Ludwig van Beethoven – Testamento de Heiligenstadt – Outubro de 1802)
Não existem dúvidas de que a audição é um sentido fundamental na sociabilidade e no reconhecimento melhor do ambiente. A idade, assim como aumenta o risco de redução da nossa capacidade visual e enfraquecimento dos demais sentidos, também aumenta o risco de surgir distúrbios auditivos e tornar a audição pior. No entanto, hoje, graças a avanços tecnológicos marcantes, há tratamentos que podem melhorar muitos dos problemas auditivos. Procure um médico o quanto antes caso a sua audição esteja dando sinais de piora.
Sobre o autor:
Possui graduação em medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e residência médica em Neurologia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Especialização em Neurologia Cognitiva e do Comportamento pela mesma instituição.
Atualmente é médico-assistente da Divisão de Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da FMUSP. Membro do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento (GNCC) do HC-FMUSP.
Membro titular da Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e membro da Academia Americana de Neurologia (AAN) desde 2018.